Eu, fazendo uso da minha psicopatia extrema, não acredito nem numa coisa nem noutra... Bem, é um facto que o processo de envelhecimento destes vinhos em barricas oxida estes vinhos antes do seu engarrafamento. O grau de oxidação destes vinhos torna-os mais imunes ao envelhecimento em garrafa (que no fundo é um processo oxidativo lento) e mesmo depois da garrafa aberta e em contacto com o ar não haveria muito mais a oxidar.
Mas a minha experiência é que Moscatel com muitos anos de garrafa altera-se com idade. Por outro lado quando abro uma garrafa de Moscatel e este não é bebido todo, uso rolhas de vácuo para o fechar. A minha impressão é que alguns dos aromas mais subtis se perdem e ao fim de alguns dias a complexidade perde-se e sabe tudo ao mesmo. Mas como vos digo tudo isto pode não passar de psicopatia minha...
Tudo isto a propósito de uma garrafa de Moscatel que abri no meu dia de anos: uma garrafa de JMF Moscatel de Setúbal 1985. Este Moscatel é o que se poderia chamar a gama corrente da José Maria da Fonseca. Sem desprimor, pois é melhor que a maioria dos outros moscatéis nesta gama de preço. Mas não deixa de ser o Moscatel mais barato da José Maria da Fonseca. Esta gama de Moscatel já teve várias denominações. Até ao início da década de 90 era usada a denominação "Moscatel de Setúbal" em que no rótulo a palavra "Setúbal" aparecia em destaque. No início da década de 90 a JMF passou a usar a designação Alambre nesta gama. A marca Alambre ganhou alguma notoriedade mas há uns anos atrás a JMF voltou a usar a denominação "Moscatel de Setúbal" na sua gama mais barata. No final do ano passado recuperaram marca Alambre nesta gama com a colheita de 2007, provavelmente para tirar proveito de alguma notoriedade que a marca tinha ganho enquanto foi usada nesta gama.
Esta garrafa esteve durante cerca de 20 anos numa prateleira do Papagaio. O Papagaio é uma taberna do Barreiro onde passei grande parte das minhas noites de 6ª e Sábado durante muitos anos. Comecei a lá ir por volta de 1990 e esta garrafa já lá estaria a fiscalizar todas as minhas bebedeiras. Passaram-se vinte anos durante os quais passei pela universidade, mudei-me para Lisboa, casei e esta garrafa continuou lá vigilante... Até que há uns 2 ou 3 anos atrás, o Sr. Zé decidiu vender-me esta e mais 3 destas garrafas de outros anos de colheita.
Logo por essa altura abri a mais recente (1987). Abri-a sem contar com grande coisa pois não passava de um moscatel corrente que tinha passado anos em condições não muito simpáticas com muita luz e variações de temperatura diárias e ao longo do ano. Apanhou-me de surpresa... Tinha ganho alguma acidez que equilibrou a sua doçura, era um moscatel com caracter e densidade que sem ser extraordinário era definitivamente diferente para melhor que quando foi colocado inicialmente naquela altiva prateleira do Papagaio.
Este "estágio" no Papagaio funcionou como uma forma caseira de estufagem. A estufagem é um processo de estágio do vinho que quando bem usada pode contribuir positivamente para o envelhecimento de vinhos generosos como o Madeira e o Moscatel. Consiste no estágio de vinho em ambientes com temperaturas elevadas e por vezes com grandes amplitudes térmicas que é utilizada e por vezes abusada no estágio dos Madeiras e em menor grau no estágio de alguns Moscatéis. No caso dos Madeiras mais correntes são mesmo usados processos artificiais para aquecer as cubas ou as salas onde o vinho estagia. Para os Madeiras de qualidade ou nos Moscatéis que usam este processo são normalmente usados armazéns ou sótãos com temperaturas mais elevadas para armazenar o vinho em barricas não recorrendo a fontes de calor artificiais. Este processo em que não são usadas fontes de calor artificiais chama-se na Madeira de Canteiro. O processo de estufagem diz-se que pretende replicar o mesmo tipo de estágio decorrente do transporte das barricas em viagens prolongadas de veleiro por climas tropicais. Este processo foi descoberto acidentalmente quando as barricas não eram vendidas no destino e retornavam de viagens intercontinentais muito melhores do que quando foram expedidas. Um caso mítico deste tipo de vinho é o Moscatel Torna-Viagem.
O 1985 que abri agora pareceu-me mais doce e com aromas a casca de laranja e com menos acidez do que o 1997. Mais meloso mas com o mesmo carácter e densidade. Não sei dizer qual achei melhor até porque entre estas duas provas decorreram 2 anos. Mas sem dúvida nenhuma valeu a pena esperar 20 anos para o beber. Não só pelas sensações gustativas que proporcionou mas também pelas emoções que relembrou e provocou devido aos nossos destinos se terem cruzado durante tantos anos num local especial chamado Papagaio.
Os produtores de Madeira normalmente referem-se a Estufagem quando são usados processos artificiais de aquecimento das cubas ou salas onde o vinho é estagiado e Canteiro quando o estágio é feito em barricas usadas sem a utilização de fontes de calor artificiais, normalmente em sótãos ou nos pisos superiores de armazéns onde a temperatura é naturalmente mais elevada. Neste artigo refiro-me a ambos os processos como estufagem. Faço isto por uma questão de simplicidade e considerando genericamente como estufagem com qualquer método de estágio que use o calor ou grandes amplitudes térmicas quer seja por métodos naturais ou artificiais. No entanto os resultados da utilização de um ou do outro processo são diferentes. Por isso a estufagem por meios artificiais é apenas usada nos vinhos mais correntes onde se pretende um estágio rápido e o canteiro nos vinhos de qualidade onde se pretende um estágio lento. Perdoem-me os puristas que prefeririam separar claramente ambos os processos por referir-me a ambos os métodos como estufagem.
Sem comentários:
Enviar um comentário